Dor Crônica e Cura na visão da Psicologia Analítica
- Patricia Cordeiro
- 3 de set. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 2 de out. de 2024

O dicionário Priberam define cura como “restabelecer ou recuperar a saúde; pôr fim a uma doença”. Em alemão curar (heilen) tem sua origem em uma palavra raiz que aparece em muitas línguas: provém de heilag, total completo.
Curiosamente a definição de saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) é “o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”.
Olhando sob esse prisma a saúde foi absorvida pela completude, pela totalidade. E, nesse caso, a totalidade como sinônimo de um não comprometimento da função e pleno desempenho mental, físico e social onde não há lugar para a incompletude e o mal-estar.
Vitaminas, suplementos, proteínas, academias, gadgtes de atividade física, personal trainer, nutricionista, vamos a cada dia tendo mais e mais opções para que possamos alcançar a saúde perfeita. Entretanto, com essa visão uni lateralizada, esquecemos de reconhecer o aspecto simbólico dos sintomas e das doenças, cuja manifestação é uma das linguagens mais expressivas do inconsciente.
De acordo com o CID XI a dor crônica é “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a dano tissular real ou potencial... é aquela que persiste ou é recorrente por mais de 3 meses. A dor crônica é multifatorial: fatores biológicos, psicológicos e sociais contribuem para a síndrome dolorosa”.
Em nossa sociedade a dor não é tolerada, é vista como negativa, um sinal de fraqueza, que prejudica o desempenho, tira a atenção para aquilo que se quer realizar, o desejo imediato é que ela seja eliminada, calada, não há espaço para dor. Mas, para algumas pessoas ela se arrasta para além da fase aguda, se estende por meses, anos e lidar com as limitações que ela impõe pode ser extremamente desafiador para aqueles que por ela atravessam.
O convite nesse texto é para que possamos trazer um outro olhar para a dor, como algo que pertence a natureza humana. Jung considera corpo e psique como uma das principais antinomias e cita que “a psique depende do corpo e o corpo depende da psique” e quando se tem premente um padrão coletivo no qual a dor e o sofrimento não deveriam existir, cabe-nos dar espaço a eles.
Byung-Chul Han em seu livro Sociedade Paliativa (2021) cita que a tolerância à dor atualmente é mínima em uma sociedade que busca uma anestesia permanente. O autor reflete que ao calarmos a dor, calamos a crítica, calamos relações sociais doentias, calamos a reflexão, calamos a verdade, calamos a alma que se expressa através da dor.
Han fala sobre a experiência da dor ser percebida como um mal sem sentido, que deve ser combatido com analgésicos e sendo compreendida como uma mera aflição corporal, tem seu aspecto simbólico excluído. Ele cita “a dor se coisificou, hoje, em uma aflição puramente corporal. A ausência de sentido da dor aponta, para o fato de que a nossa vida, reduzida a um processo biológico, é ela mesma esvaziada de sentido...”.
Jung destaca o papel do inconsciente como responsável por provocar ou prolongar doenças físicas, ao afirmar que um funcionamento inadequado da psique pode causar tremendos prejuízos ao corpo, da mesma forma que, inversamente, um sofrimento corporal consegue afetar a alma, visto que só artificialmente é que se pode separar a psicologia da biologia, uma vez que a alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel. Alma e corpo são animados por uma mesma vida, sendo “rara a doença do corpo que não seja de origem psíquica e que não tenha implicações na alma”.
Dessa forma compreender os sintomas como expressões simbólicas do inconsciente e a dor como uma dessas expressões, possa ser um chamado. E, como afirma Jung só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos, e como não podemos negligenciar a psique e a influência do inconsciente em nossas vidas, não há possibilidade de cura ou de melhoria no mundo que não comece por nós mesmos.
Atualmente quando se fala nas abordagens da dor crônica e persistente, fala-se em manejo e não em cura, ou seja, fala-se em abordagens para o alívio da dor, mas especialmente em melhora da funcionalidade e da qualidade de vida. A partir disso, talvez possamos buscar em paralelo também qual seria o chamado da dor crônica e persistente, aceitar esse arquétipo e tirar dele um para quê, um aprendizado e uma nova experiência de viver.
Um processo de análise poderá contribuir para que em cada indivíduo desabroche a vida na maior amplitude possível, pois o sentido da vida só se cumpre no indivíduo vivendo plenamente a sua existência e o chamado da alma. (JUNG, 1998b, A prática da psicoterapia, p.104, §229).